terça-feira, 2 de dezembro de 2008

INTRODUÇÃO

Para o fim a que se destina este trabalho, aceita-se como definição de cultura aquela constante do Dicionário Filosófico Abreviado de M. Rosental (1950):

CULTURA – Conjunto de valores materiais e espirituais criados pela humanidade, no curso de sua história. A cultura é um fenômeno social que representa o nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica: progresso, técnica, experiência de produção e de trabalho, instrução, educação, ciência, literatura, arte e instituições que lhes correspondem. Em um sentido mais restrito, compreende-se, sob o temo de cultura, o conjunto de formas da vida espiritual da sociedade, que nascem e se desenvolvem à base do modo de produção dos bens materiais historicamente determinado. Assim. Entende-se por cultura o nível de desenvolvimento alcançado pela sociedade na instrução, na ciência, na literatura, na arte, na filosofia, na moral, etc., e as instituições correspondentes. Entre os índices mais importantes do nível cultural, em determinada etapa histórica, é preciso notar o grau utilização dos aperfeiçoamentos técnicos e dos desenvolvimentos científicos na produção social, o nível cultural e técnico dos produtores dos bens materiais, assim como o grau de difusão da instrução, da literatura e das artes entre a população.

Partindo dessa premissa, é evidente que possuímos herança cultural, acervo cultural. Trata-se de definir-lhe as características. Partindo do método histórico, vamos situar a cultura brasileira em seu desenvolvimento para, depois, definir-lhe as características atuais, pelo método lógico.

ORIGEM COLONIAL

O primeiro traço a destarcar-se, no estudo do caso brasileiro, é o da origem colonial. É preciso distinguir, ainda, no amplo quadro da origem colonial (que abrange todos os continentes, salvo a Europa) que, no caso do Brasil, trata-se antes de mais nada, de uma "civilização" transplantada. Não havia antes, no nosso território, nada que interessasse o europeu. O Brasil surge, assim, na História, com a "descoberta", cuja conseqüência mais importante é sua incorporação ao mercado mundial, que só então começa a existir. Como nada existe aqui de interesse para o surto mercantil da época, trata-se, para os europeus, de criarem riqueza, à base de mercadoria já existente na troca. Essa a diferença: o outro tipo de áreas coloniais é definido por aquelas em que já existe produção e até comércio; são as orientais e, em parte, as africanas. Oselementos destinados à empresa de "colonização", isto é, de ocupação produtiva – no caso do Brasil – provém do exterior, são para aqui transplantados, tanto os senhores – os que exploram o trabalho alheio – como os trabalhadores – os escravos. Uns vêm da Europa, em reduzido número; outros da África, em avultado número, quando a empresa produtora aparece acabada, quando em pleno funcionamento. Assim, provém do exterior tanto os elementos humanos como os recursos materiais. A empresa se destina a enriquecer os que exploram o trabalho; a produção se destina a mercados externos. Está condicionada, historicamente, pela etapa da manufatura: só quando a produção, no fim do medievalismo, evolui do artesanato, ampliando-se na manufatura, surge a necessidade histórica do mercado mundial e, portanto, das grandes navegações e descobrimentos marítimos. A contribuição da nova área é apenas a terra – abundante e inculta. A colônia torna-se objeto porque, para a produção, só pode proporcionar o objeto. Numa produção transplantada, e montada em grande escala, para atender exigências externas, surge naturalmente uma cultura também transplantada.

ÁREAS CULTURAIS

Não pertence aos limites deste estudo a análise da etapa anterior das três correntes humanas que vão concorrer na tarefa da chamada "colonização" – o índio, o negro, o português. Há que aceitar a heterogeneidade de cada uma delas; a cultura aqui elaborada vai refletir essa heterogeneidade. Na elaboração da etapa anterior da cultura de cada uma influiu, necessariamente, o regime a que estavam submetidas: o índio vivia no regime da comunidade primitiva, em organização tribal; o português, em regime feudal;o africano, no regime da comunidade primitiva ou no regime escravista. Cada uma dessas correntes humanas carreia essa cultura anterior para o Brasil, onde se encontram. Disso decorre um processo que a Antropologia consagrou como "aculturação".

Do encontro dessas três correntes humanas, no Brasil, surgiram conflitos ou acomodações, transitórios ou duradouros, que permitem distinguir, tão logo aparece a produção, por menos importante que seja, a largos traços, duas áreas culturais:
= a área de supremacia da cultura indígena – em extensão – economicamente secundária, com predomínio de relações feudais;
= a área de supremacia da cultura transplantada, economicamente principal, com predomínio de relações escravistas.

Vista em conjunto, e do exterior, a colônia aparece definida pela segunda (capitania de Pernambuco e vizinhanças e capitania da Bahia, depois de revertida à Coroa e sediada no Recôncavo, o Governo-Geral). A primeira (área amazônica, área sertaneja, área vicentina, área platina) carece de significação, até o século XVIII. Nesta, só existem formas não sistemáticas de transmissão de cultura, transmitida oralmente ou por imitação, salvo no que se refere aos religiosos de ofício. Naquela, aparecem formas sistemáticas de transmissão de cultura, monopolizadas pelas Ordens religiosas, os jesuítas em destaque. Em ambas defendiam-se, evidentemente, as duas culturas – a da classe dominante e a da classe dominada – aparecendo a primeira como a cultura em geral.. Ambas são transplantadas – salvo, o que é irrelevante, a que pertence ao índio – e participam do processo dito de "aculturação". A sociedade definida em duas classes, que mantém entre si grande distância social, não tem exigências culturais destacadas, nem mesmo a dos conhecimentos mais elementares – ler, escrever e contar – dos colégios jesuíticos. Os que recebem esse ensino são pouco numerosos e pertencem à classe dominante, assim como os que vão além desse nível.

O aparelho de Estado, na colônia, é rudimentar; suas funções são providas da metrópole; a ordem pública está submetida à ordem privada. Não há, assim, exigência cultural sistemática a ser preenchida pelo ensino, pela cultura que está nos livros. Os poucos elementos cultos – em que se distinguem os religiosos das Ordens – operam com a cultura transplantada. Aqui chega, realmente, mínimo e distante eco das criações renascentistas e mesmo do esplendoroso quinhentismo português. Assim, a cultura parece, ostensivamente, como traço de classe; privativa da classe dominante pouco numerosa. No conjunto, aliás, inculta.

ETAPAS DA CULTURA

Aceita a premissa da cultura transplantada, é possível repartir o desenvolvimento da cultura brasileira em 3 etapas:
1°: cultura transplantada anterior ao aparecimento da camada social intermediária, a pequena burguesia;
2°: cultura transplantada posterior ao aparecimento da camada intermediária;
3°: surgimento e processo de desenvolvimento da cultura nacional, com o alastramento das relações capitalistas.

As duas primeiras etapas pertencem à época em que a classe dominante, no Brasil, é escravista ou feudal, isto é, formada por senhores de escravos ou de servos, evoluindo de uma fase inicial em que, praticamente, não há camada social intermediária entre senhores e escravos ou servos, para uma fase em que essa camada começa a existir e a ter um papel que é, aliás, muito importante no que se refere à cultura. A terceira etapa pertence à época em que a classe dominante, no Brasil, é a burguesia, tendo desaparecido o escravismo, persistindo, entretanto, remanescentes feudais, parcelas de população vivendo em relações pré-capitalistas. A esta etapa pertence a vigência dos meios modernos de cultura de massa.

É possível fixar, para referência, a passagem da primeira à segunda etapa na altura do início da segunda metade do século XVIII. Em 1750, o Tratado de Madri fixa, em linhas gerais, a fisionomia territorial da colônia; é desse ano a fundação do Seminário de Mariana, assinalando o princípio da passagem da estrutura jesuíta do ensino às outras Ordens e aos leigos; em 1759, Pombal expulsa os jesuítas e, com isso, arruína a referida estrutura de ensino, que vigorou, solitária, dois séculos e meio; em 1762, o Rio de Janeiro passa a ser a sede do governo colonial, em decorrência do apogeu da mineração; com esse apogeu, e tudo o que dele deriva, estão realizadas as condições para o papel que começa a ser desempenhado pela camada social intermediária, a pequena burguesia. Assim, parece aceitável a data de 1750 como divisória entre a primeira e a segunda etapas, sempre dentro da concepção da relatividade e de recurso didático das repartições no tempo de complexos processos de desenvolvimento histórico.

Na historiografia brasileira, por outro lado, as opiniões convergem cada vez mais no sentido de aceitar a Revolução de 1930 como etapa que define com clareza o avanço das relações capitalistas no Brasil e, conseqüentemente, a ascensão da burguesia à posição dominante, não só do ponto de vista econômico – o que dispensa controvérsia – mas também do ponto de vista político. O novo poder, derivado do movimento político-militar do referido ano, apresenta a burguesia como classe dominante; seu domínio no aparelho de Estado não é absoluto, mas existe nitidamente. Assim parece aceitável assinalar em 1930 a passagem da segunda à terceira etapas do desenvolvimento histórico da cultura brasileira. A partir de então, as relações capitalistas, que se vinham desenvolvendo lentamente, aceleram seu ritmo de desenvolvimento e definem o regime de produção, apesar da vigência ainda, em extensas áreas, de relações pré-capitalistas.

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