terça-feira, 2 de dezembro de 2008

PRIMEIRA FASE – CULTURA COLONIAL

Transplantação da Cultura Metropolitana

Antes de tudo, é preciso compreender que, nas condições apresentadas pelo Brasil, no alvorecer do século XVI, a transplantação, como já esclareceu alguém, representou expediente historicamente necessário para permitir, rompendo o ritmo espontâneo de desenvolvimento, a passagem da extensa área de predomínio da comunidade primitiva, sob organização tribal – no estágio da pedra lascada – à fase mercantil, em que se insere como objeto de empresa de consideráveis proporções. A transplantação, no caso, importava em queimar etapas intermediárias. O processo tem todos os traços de brutalidade, de que será conseqüência, inclusive a destruição da comunidade primitiva indígena e de seus valores culturais, na área em que se implanta, com os recursos humanos e materiais importados, a grande propriedade escravista fornecedora de mercados externos.

O processo dito de "colonização" alinha numerosos aspectos predatórios, na sua exigência elementar de produzir em grande escala. A princípio desenvolve-se por tentativas, fixando-se, em seguida, em algumas faixas de condições geográficas e ecológicas favoráveis, para nelas crescer rapidamente. No fim do século XVI, a "colonização" apresenta alguns traços já definidos: o primeiro deles é o da distância entre o Brasil e a metrópole e os mercados a que a sua produção se destina; disso decorre o segundo, que é o da servidão oceânica, impedidas as áreas produtoras de internamento, permanecendo dependentes do transporte marítimo; outro consiste no isolamento entre as diversas áreas produtoras, sem ligação entre si, vivendo autônomas e esquecidas. Sobre essa fragmentação de núcleos de ocupação humana, de áreas produtoras – que conferem à colônia o aspecto econômico e demográfico de arquipélago gigantesco, que o país herda e conserva até o século XIX – paira o opaco manto da clausura, decorrente do regime de monopólio de comércio exercido pela metrópole, e que veda o contato com estrangeiros. A identidade de fins, de propósitos e de métodos neutraliza a dispersão e o isolamento, estabelecendo condições para a unidade cultural; a clausura sanciona e acoberta essa unidade cultural. Alicerça-a, ainda, a língua que estabelece a comunidade no meio de transmissão da cultura, apesar do bilingüismo inicial e natural. Outro fator de unidade cultural é a religião, pois à "colonização" junta-se a catequese, completando-a, reforçando-a, multiplicando seus efeitos e possibilidades.

Únicos elementos dotados de cultura, numa sociedade em que a classe dominante era pouco numerosa, os religiosos responderam, em parte, pelo bilingüismo do século XVI, pela existência de uma língua, dita "geral", que era a do índio – e só isso comprova a força de sua contribuição cultural – ao lado da língua oficial, o português; de uma língua popular, em contraste com uma língua culta; e, agravando o problema, paralelamente, o uso do latim religioso, entre os pares. Tão grave pareceu às autoridades metropolitanas, o bilingüismo e tão espantadas ficaram com a "extensão que ganhou o tupi, como língua geral, a ponto de ser utilizada até nos púlpitos" que uma provisão de 1727 proibiu o seu uso. Segundo Teodoro Sampaio, o tupi era mais usado nas relações comuns, e na proporção de 3 para 1, em relação ao português. Assim confirma Fernando de Azevedo: "O português não era, de fato, mais vulgarmente falado do que o tupi, em que, desde os primeiros anos da metrópole, se adestravam os jesuítas para maior facilidade de sua missão, e que chegou a vulgarizar-se de tal modo entre colonos que no Maranhão e no Pará se empregava no púlpito exclusivamente o idioma do índio. Assim quando se pretendia falar ao povo era a língua selvagem que mais se empregava, reservando-se o português, língua oficial, para as camadas mais cultas. (Fernando de Azevedo: A cultura brasileira. Introdução ao estuda da cultura no Brasil, Rio, 1943, pág. 179)

É fácil compreender como, sendo pouco numerosa e pouco afeiçoada às coisas da cultura, a classe dominante tivesse de se submeter, para o uso comum, ao idioma do indígena, a que seus elementos cultos – os religiosos – deviam também submeter-se pela imposição do mister da catequese. A forma a que obedecem, por isso mesmo, os elementos cultos, quando tratam ou visam os seus pares, em documentos ou discursos dotados ou não de intenção e de dimensão artística, é a da língua culta falada na metrópole, a língua oficial que a provisão de 1727 busca preservar em sua pureza e, mais do isso, em sua superioridade, em sua dominação como instrumento de cultura. Disso deriva, naturalmente – e, no fundo, também do caráter essencial vinculado à transplantação – a artificialidade, o convencionalismo, a fragilidade dessas contribuições, "reflexo apagado da metrópole distante".

A todos os traços que denunciam, na colônia, refratariedade às formas superiores de cultura acrescenta-se, com função negativa poderosa, a ausência de vida urbana. O isolamento rural representa obstáculo considerável à transmissão da cultura; a vida urbana desenvolve-se lentamente, quase não existe, é apagada, secundária. As poucas cidades são, no dizer de Oliveira Viana, "dependências dos engenhos, burgos de família, onde os senhores vinham passar as festas". Não passam, segundo outro ensaísta, de "aldeias acanhadas, sujas, atropeladas de becos e vielas, de designações pitorescas", marcando uma "vida urbana sonolenta e obscura". A população concentrava-se nos latifúndios, "verdadeiros núcleos autônomos", exercendo "predomínio esmagador, tanto do ponto de vista social como econômico, sobre as formações urbanas", que gravitavam "na órbita e na dependência dos grandes proprietários de terras". Não é nas cidades que o artesanato,mas nas grandes propriedades rurais, à semelhança do que ocorria no medievalismo com os castelos. As artes que encontram alguma possibilidade de manifestação são aquelas próximas dos ofícios, meramente artesanais, e valem pela utilidade.

Mas nem a escultura ou a pintura, nem mesmo a arquitetura, apresentam trabalhos dignos de menção, tal como acontece no domínio das letras. As casas são rústicas, inclusive as dos senhores mais destacados, pesados os móveis, pobres as capelas, distinguindo-se apenas as fortificações. A casa típica, que marca a paisagem social, é a sede de engenho ou fazenda que, pelas dimensões enormes que suas múltiplas finalidades impõem, fica logo conhecida como casa grande; de "simplicidade rústica, de pedra e cal, com cobertura de palha ou de telha, e a varanda de tipo alentejano ou árabe", apresentava "o aspecto de uma construção castrense". A esse aspecto externo, acrescentava-se "a simplicidade rústica e a pobreza dos interiores". Assim era em Pernambuco, mas também em São Paulo, onde "as casas de pau-a-pique ou de taipa, de pedra e cal, cobertas a princípio de palha e, mais tarde, de telhas, quando esse tipo de cobertura já se havia difundido pelo litoral, são geralmente térreas"; os móveis são "simples e escassos".

Transplantação e Alienação

A expansão navegadora que decorreu do desenvolvimento mercantil, ao fim do medievalismo, é contemporânea da cisão religiosa definida com a Reforma. Como aquela expansão foi capitaneada pelas nações católicas, "colonização" e catequese religiosa confundiram-se. A catequese foi uma das manifestações mais importantes da Contra-Reforma; e, nela distinguir-se-iam os jesuítas, que se dedicam, desde logo, à conversão do gentio e, para isso, especializam-se na tarefa de conquistar as consciências. No Brasil, por necessidades próprias da Ordem e por necessidades de exercício do mister da conversão, especializam-se ainda na tarefa do ensino e montam para isso, com pertinácia singular, a estrutura que, por dois séculos e meio, assegurou a transmissão sistemática da cultura. Essa estrutura desenvolveu-se em dois planos: o das escolas de ler, escrever e contar, visando às crianças, e dos colégios, visando aos adolescentes. Aquelas foram apresentadas como voltadas para os columins, mas a verdade é que – e não poderia ser de outra maneira – acolheu os filhos dos senhores. Foram estes, ainda, os que receberam, nos colégios, o ensino jesuítico.

Ora, esse ensino se caracterizava pela alienação, e essa alienação, no caso do Brasil, acrescenta à transplantação – historicamente necessária, nessa fase inicial, como ficou dito – uma dimensão nova. "Ensino destinado a formar uma cultura básica, livre e desinteressada,sem preocupações profissionais, e igual, uniforme em toda a extensão do território" – definiu-o Fernando de Azevedo. Aprofundando assim a sua análise: "A cultura brasileira, que por ele se formou e se difundiu nas elites coloniais, não podia evidentemente ser chamada nacional senão no sentido quantitativo da palavra, pois ela tendia a espalhar sobre o conjunto do território e sobre todo o povo seu colorido europeu: cultura importada em bloco do Ocidente, internacionalista de tendência, inspirada por uma ideologia religiosa, católica, e a cuja base residiam as humanidades latinas e os comentários da obra de Aristóteles, solicitadas num sentido cristão.
Tratando-se de uma cultura neutra do ponto de vista nacional (mesmo português), estreitamente ligada à cultura européia, na Idade Média, e alheia a fronteiras políticas – como tinha de ser a cultura difundida por uma associação essencialmente internacional, com o característico de verdadeira malícia papalina" – é certo que essa mesma neutralidade (se nos colocarmos no ponto de vista qualitativo) nos impede de ver, nessa cultura, nas suas origens e nos seus produtos, uma cultura especificamente brasileira, uma cultura nacional ainda em formação".

Ainda que alienado, mesmo em relação à cultura portuguesa – e parte considerável dos jesuítas que trabalharam no Brasil, na fase referida, nem era nascida na metrópole – o ensino dos inacinos voltava-se particularmente para o recrutamento de quadros em benefício da Companhia e, se "essa cultura, de feição literária e escolástica, era até certo ponto desinteressada, sem preocupações utilitárias", por outro lado, "se caracterizava pela sua unidade orgânica, ligada como estava a uma determinada concepção de vida, dominante por essa época na metrópole e no seu único centro universitário". Um historiador definiu o ensino jesuítico de maneira semelhante: "A associação que existiu, desde logo, entre a empresa ultramarina e a tarefa de catequese religiosa, entretanto, proporciona a singularidade de trazer aos domínios coloniais elementos a que a condição intelectual pertencia como dever de ofício. Os únicos elementos dotados de dimensão intelectual na colônia, são, realmente, os religiosos, e em particular os membros da Companhia de Jesus. Coube-lhes por isso mesmo, a tarefa do ensino, em que se esmeraram e por meio da qual não só influíram como recrutaram os próprios quadros.
Esse contraste entre as condições do meio, que eram adversas, e o ofício intelectual dos religiosos, estabelece a característica fundamental dos resultados alcançados. O que existe não é fusão, mas justaposição entre os dois elementos, o meio e os religiosos, no que diz respeito ao campo intelectual. Daí os traços da cultura que elaboram, o seu teor desinteressado, a sua desvinculação com a realidade, a sua alienação quanto ao meio – transitando, finalmente, para uma sorte de erudição livresca, vazia, meramente ornamental, que satisfazia a vaidade do indivíduo, mas em nada concorria para a comunidade. Foi por intermédio do ensino religioso que se recrutaram, em todo caso, os primeiros elementos dotados de dimensão intelectual. E só o destino religioso poderia explicar e justificar os estudos, uma vez que nenhuma outra atividade necessitava dos elementos fornecidos pelo ensino. Só para difundir preceitos religiosos se recebiam e utilizavam os conhecimentos. Outra finalidade teria sido incompreensível. Os letrados dos primeiros decênios são, pois, homens de religião, soldados da fé. Os conhecimentos que recebem não são procurados por si mesmos, pelo prazer ou pela utilidade que possam proporcionar, mas pela finalidade, como elementos indispensáveis, como ferramenta no trabalho de catequese. Assim tais conhecimentos conservam-se por abstração, permanecem meramente formais. Não eram caminho para entendimento da vida e do homem e não estavam em condições de proporcionar, de forma alguma, as bases para a novas conquistas, ou as pontes para a aventura do espírito. O ensino jesuítico, por outro lado, conservado à margem, sem aprofundar a sua atividade e sem preocupações outras senão as do recrutamento de fiéis ou de servidores, tornava-se possível porque não perturbava a estrutura vigente, subordinava-se aos imperativos do meio social, marchava paralelo a ele. Sua marginalidade era a essência de que vivia e se alimentava".

As condições objetivas desfavoreciam, assim, a atividade cultural, relegada a plano secundaríssimo. A classe dominante não necessitava dela, e a classe dominada não a podia sustentar. Daí a vigência, nessa fase inicial, de uma "disciplina escolástica, verbalista e dogmática", que resume o trabalho da inteligência à subalternidade daquilo, que se destina apenas a "preencher os ócios de desocupados", própria do homem "desinteressado das idéias e tão facilmente impressionável e sujeito ao encanto da forma, ao aparato da linguagem e às pompas da erudição". Nessas obscuras origens, em que a cultura deparou com condições objetivas gravemente adversas ao seu desenvolvimento – à sua existência mesmo – ancoram alguns dos traços que se vincaram nela, marcando-a, e que um intérprete sagaz assim analisou: "O que o caracteriza (aos brasileiros) não é a penetração, nem o vigor, nem a profundidade, mas a facilidade, a graça, o brilho é a rapidez no assimilar, a ausência total de exatidão e de precisão, o hábito de tomar as coisas obliquamente e de lhe apanhar os aspectos que tocam menos a inteligência do que à sensibilidade. Aliás, nesse mundo móbil e disperso, dominado pelas necessidades materiais imediatas, a filosofia e a ciência não tiveram tempo de lançar raiz; e todos os defeitos dessa cultura verbalista, escolástica, dogmática, que herdamos dos portugueses e que se infiltrou até a medula no ensino de todos os graus, não revelam menos uma inteligência fraca do que uma inteligência mal formada, e, portanto, capaz, como já o tem provado, de se destacar, sob uma nova orientação, em todos os domínios da literatura e das artes, como da técnica, da ciência e do pensamento puro". (Fernando de Azevedo)
Claro que essas deficiências são historicamente condicionadas, isto é, persistem na medida em que persistem as condições objetivas que assim se amoldaram, e desaparecem quando tais condições se alteram, não tendo relação causal – como efeito – de natureza genética ou mesmo geográfica, como ainda hoje – porém, com mais vigor, antes do nosso tempo – se pretende veicular, como verdade científica e eterna. Tais deficiências não eram "brasileiras", mas "coloniais", comuns ao tipo de colônia de que o Brasil foi exemplo, em que a fase histórica se inicia pela transplantação cultural. Nessa transplantação colonial, a alienação jesuítica inseriu-se como complemento natural, como reforço.

Teve, além disso, como decorrência da tarefa da catequese, o efeito de destruição dos valores da cultura indígena: "A cultura indígena, não somente quanto à língua, mas na espontaneidade e variedade de suas formas, se foi lentamente substituindo, no raio da influência dos missionários, por um outro tipo de cultura, de acordo com os ideais dos jesuítas, e sua concepção de vida e do mundo, idêntica para todos os povos". Foram, nesse sentido, de eficiência exemplar, ligada à disciplina, ao método, à organização com que operavam.

Assim, ao mesmo tempo que a comunidade primitiva indígena era esmagada, interrompida sua evolução natural e surgia na colônia, não dessa evolução, mas do exterior, o regime escravista, a cultura correspondente era violentada e extinta, substituída rapidamente pela cultura alienada do jesuíta. Mas inclusive essa tarefa cultural conservadora por natureza – no sentido de preservadora de valores tradicionais e transplantados – foi vista com maus olhos pela metrópole, que, em 1675, recusaria a equiparação do colégio da Bahia ao de Évora, na linha de uma orientação prolongada, já no fim da etapa de que nos ocupamos, com a determinação de queimar e destruir, em 1747, o primeiro estabelecimento gráfico que se instalou no Brasil. Na realidade, tratava-se de uma cultura – a jesuítica – de apego ao dogma e à autoridade, de respeito à tradição escolástica e literária, de repulsa às atividades criadoras ou inovadoras, uma "cultura disciplinada para se fazer moral", claramente definida por Azevedo: "Com esse espírito de autoridade e de disciplina e com esse admirável instrumento intelectual de domínio e de penetração, que foi o seu ensino sábio, sistemático, medido, dosado, mas nitidamente abstrato e dogmático, o jesuíta exerceu, na colônia trabalhada por fermentos de dissolução, um papel eminentemente conservador e, ensinando as letras à mocidade, fez despontar pela primeira vez na colônia o gosto pelas coisas do espírito".

"Força de conservação", o "ensino de classe, dogmático e retórico", padronizava a cultura, formava reduzida e rala minoria de letrados, ilhada pelo total desinteresse dos demais, marginalizada pelo conteúdo de alienação implícito no que aprendia e cultivava, desprovido tudo de senso crítico e distante do espírito criador. A base estava na herança da escolástica e da cultura clássica, com predomínio absoluto do latim, da gramática e da retórica, transmitida – sem enriquecer e sem enriquecer-se – pelas gerações de letrados, elementos desprovidos de influência, em que o saber se apresentava como prenda, salvo no que dizia respeito a atividade de ofício no caso dos religiosos. Essa cultura tipificava porque refletia bem as condições objetivas, fazendo parte, como peça destacada, do conjunto de traços que definiriam, aqui, por larguíssímo período, o desamor pelo trabalho da terra e pelos ofícios mecânicos, fazendo do trabalho físico em geral um equivalente à escravidão, aviltando-o assim, ao mesmo tempo que definia a atividade cultural como específica da ociosidade, apresentando, no cenário colonial e de forma particular, a condição entre o trabalho físico e o trabalho intelectual. Daí o ostensivo caráter de classe da cultura colonial.

Na etapa inicial, pois, a atividade da cultura é reduzida, vivendo apenas nos círculos de classe, distanciada a da classe dominante daquela que surge e se desenvolve na classe dominada. Transplantadas, nos dois casos, salvo no que se refere ao indígena, naturalmente; mas só um critério de espaço e antecedência firmaria a artificiosidade de aceitar como autóctone (nativo)o que o índio criava, em termos de cultura, para diferenciar da contribuição portuguesa e da africana, colocadas, por contraste formal, como estranhas. A cultura da classe dominante, nessa fase inicial, constituiu patrimônio pobre – desprezada, naturalmente, a contribuição ligada ao episódio holandês, que embora tenha sido fixada em alguns monumentos, deixou vestígios superficiais e de forma alguma conseguiu inserir-se no processo histórico do desenvolvimento de nossa cultura. Nas letras, abafadas pela multidão de criações e de trabalhos paraliterários, sem intenção e sem dimensão artística, predomina o modelo metropolitano: trata-se, a rigor, de literatura portuguesa elaborada na colônia, entrando esta, quando muito, como objeto dessa literatura. Nas artes plásticas – excluído aqui tudo o que se ligou ao episódio holandês – o material que nos chegou é de indiscutível indigência.

No conjunto, destacando-se a música e sua parceira, a dança, particularmente pela contribuição da classe dominada. Ligadas em suas origens diretamente ao trabalho, que buscavam suavizar, ou servindo a crenças mais antigas, música e dança conseguiram, nessa fase, fixar manifestações interessantes. Ao lado da música religiosa, mantida nas cerimônias de igreja – manifestação de cultura da classe dominante – surge, e está definida na segunda metade do século XVI – a música popular, com as contribuições ligadas ao indígena e aos elementos transplantados, o português e o africano, predominando uns nas cantigas e outros batuques, surgindo e fundindo-se não apenas instrumentos novos – os de percussão – como ritmos cuja variedade constitui, desde então, uma das nossas riquezas musicais. Conquanto boa parte da contribuição indígena à música e à dança tenha se perdido, parece certo que a de africanos e portugueses, fixou-se de maneira indelével em nosso patrimônio cultural, residindo nessa herança o que de melhor existe nele.

O silêncio de Caramuru

O ano é 2008, o mês: dezembro e há tempos não ouvimos nesta aldeia, os festejos de Caramuru...

Nós, o povo gentio, apreensivos estamos pela ignorância do último carregamento chegado às terras de Caramuru.

Mensagens de fumaça se espalham pela aldeia e na leitura daqueles que ainda se recordam como se decifram tais códigos, indicam que boa coisa não é, inclusive, a tribo dos pessimistas afirma categoricamente que se trata de carregamento explosivo, trazendo consequências nefastas ao bom povo desta terra.

Mas como os pessimistas não são muito respeitados, o contra-argumento é que explosivos já faz parte de nosso cotidiano, desde que Caramuru foi transplantado para esta aldeia.

Já a tribo parasitas, da qual faz parte Caramuru, "boateiam" que o carregamento não é nada perigoso. Trata-se apenas de aves raras importadas de países distantes, as quais foram encomendadas para compor o cenário da próxima peça teatral dirigida por ele e que tem estréia prevista para o próximo ano.

Essa tese não é unanimidade entre os parasitas. Determinada facção, aquela que ocupa um espaço privilegiado na taba, conhecido como "oca de um dos poderes", prefere não se manifestar, ou seja, aguarda provas substanciais para tomar uma posição, ou não, sobre esse carregamento.

Mas o que é mais alarmante é o silêncio de Caramuru...

Um de seus cambonos, ao que dizem, um dos mais dedicados, atribuiu-se à função de porta-voz de "Mumu" (assim ele o chama), anunciando que o momento é de crise, mas que não é uma crise provocada por nós e sim pelos "Outros". O enigma está em saber que tribo é essa, pois nunca ouvimos falar e porque falar de crise, se o que queremos saber é sobre esse misterioso carregamento depositado no porto.

Caramuru, sempre dado a folguedos permanece em silêncio...

Lisa Camargo

Cultura Transplantada

Acompanhando o estudo de Werneck podemos observar que a cultura brasileira surge como um transplante da cultura portuguesa, bem como, européia.

Como mostram outros historiadores, isso não se caracteriza como um fenômeno único. Na história dos povos ibéricos, árabes, asiáticos, o processo de influência de uma cultura dominante pela dominada (em situações pós-guerra, dentre outros motivos), na verdade, quase sempre caracteriza-se por uma transposição.

No caso do Brasil e dos demais países americanos, como também dos africanos, o que difere é a condição inicial de colônia. Como bem ilustra Gilberto Freire em "Casa Grande & Senzala" o Brasil ficou condicionado a ser o quintal de Portugal e posteriormente de outros países ibéricos. Inicialmente não havia uma plano de ocupação claro senão apenas um processo extrativista e predatório.

Milhões de indígenas foram dizimados por doenças, conflitos, muitos suicidaram-se por não suportar as condições de trabalho escravo e os rebeldes que não aceitaram ser catequizados fugiram para o interior do território.

Os jesuítas tiveram um papel de múltiplas facetas neste processo. Entre os estudos de vários historiadores podemos observar que muitos vieram para cá por idealismo, para arrebanhar fiéis, no entanto, outros muitos se tornaram hábeis mercadores, desenvolvendo técnicas de barganha tanto para com o índio quanto para com a coroa.

Essa ambigüidade trouxe problemas aos missionários jesuítas no final do século XVIII. Após o tratado de Madri não foi possível mais permanecer em cima do muro e então a ordem ficou entre a Cruz e a Coroa, chegando até a ser expulsa do país que estava "ajudando" a formar.

A língua tupi-guarani desenvolvida por eles em conjunto com os índios e falada pela imensa maioria da população colonial então teve que ser substituída pela nova língua oficial: o português. Esse foi o golpe final dos europeus para evitar qualquer influência determinante do indígena na cultura recém-transplantada. Como coloca Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", até o início do século XVIII a língua mais falada na província de São Paulo, por exemplo, era o tupi-guarani. Hoje é o Português, no entanto, na maioria dos nomes dos bairros e rios da cidade ainda prevalece o tupi.

Por Mário Sérgio Barroso

INTRODUÇÃO

Para o fim a que se destina este trabalho, aceita-se como definição de cultura aquela constante do Dicionário Filosófico Abreviado de M. Rosental (1950):

CULTURA – Conjunto de valores materiais e espirituais criados pela humanidade, no curso de sua história. A cultura é um fenômeno social que representa o nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica: progresso, técnica, experiência de produção e de trabalho, instrução, educação, ciência, literatura, arte e instituições que lhes correspondem. Em um sentido mais restrito, compreende-se, sob o temo de cultura, o conjunto de formas da vida espiritual da sociedade, que nascem e se desenvolvem à base do modo de produção dos bens materiais historicamente determinado. Assim. Entende-se por cultura o nível de desenvolvimento alcançado pela sociedade na instrução, na ciência, na literatura, na arte, na filosofia, na moral, etc., e as instituições correspondentes. Entre os índices mais importantes do nível cultural, em determinada etapa histórica, é preciso notar o grau utilização dos aperfeiçoamentos técnicos e dos desenvolvimentos científicos na produção social, o nível cultural e técnico dos produtores dos bens materiais, assim como o grau de difusão da instrução, da literatura e das artes entre a população.

Partindo dessa premissa, é evidente que possuímos herança cultural, acervo cultural. Trata-se de definir-lhe as características. Partindo do método histórico, vamos situar a cultura brasileira em seu desenvolvimento para, depois, definir-lhe as características atuais, pelo método lógico.

ORIGEM COLONIAL

O primeiro traço a destarcar-se, no estudo do caso brasileiro, é o da origem colonial. É preciso distinguir, ainda, no amplo quadro da origem colonial (que abrange todos os continentes, salvo a Europa) que, no caso do Brasil, trata-se antes de mais nada, de uma "civilização" transplantada. Não havia antes, no nosso território, nada que interessasse o europeu. O Brasil surge, assim, na História, com a "descoberta", cuja conseqüência mais importante é sua incorporação ao mercado mundial, que só então começa a existir. Como nada existe aqui de interesse para o surto mercantil da época, trata-se, para os europeus, de criarem riqueza, à base de mercadoria já existente na troca. Essa a diferença: o outro tipo de áreas coloniais é definido por aquelas em que já existe produção e até comércio; são as orientais e, em parte, as africanas. Oselementos destinados à empresa de "colonização", isto é, de ocupação produtiva – no caso do Brasil – provém do exterior, são para aqui transplantados, tanto os senhores – os que exploram o trabalho alheio – como os trabalhadores – os escravos. Uns vêm da Europa, em reduzido número; outros da África, em avultado número, quando a empresa produtora aparece acabada, quando em pleno funcionamento. Assim, provém do exterior tanto os elementos humanos como os recursos materiais. A empresa se destina a enriquecer os que exploram o trabalho; a produção se destina a mercados externos. Está condicionada, historicamente, pela etapa da manufatura: só quando a produção, no fim do medievalismo, evolui do artesanato, ampliando-se na manufatura, surge a necessidade histórica do mercado mundial e, portanto, das grandes navegações e descobrimentos marítimos. A contribuição da nova área é apenas a terra – abundante e inculta. A colônia torna-se objeto porque, para a produção, só pode proporcionar o objeto. Numa produção transplantada, e montada em grande escala, para atender exigências externas, surge naturalmente uma cultura também transplantada.

ÁREAS CULTURAIS

Não pertence aos limites deste estudo a análise da etapa anterior das três correntes humanas que vão concorrer na tarefa da chamada "colonização" – o índio, o negro, o português. Há que aceitar a heterogeneidade de cada uma delas; a cultura aqui elaborada vai refletir essa heterogeneidade. Na elaboração da etapa anterior da cultura de cada uma influiu, necessariamente, o regime a que estavam submetidas: o índio vivia no regime da comunidade primitiva, em organização tribal; o português, em regime feudal;o africano, no regime da comunidade primitiva ou no regime escravista. Cada uma dessas correntes humanas carreia essa cultura anterior para o Brasil, onde se encontram. Disso decorre um processo que a Antropologia consagrou como "aculturação".

Do encontro dessas três correntes humanas, no Brasil, surgiram conflitos ou acomodações, transitórios ou duradouros, que permitem distinguir, tão logo aparece a produção, por menos importante que seja, a largos traços, duas áreas culturais:
= a área de supremacia da cultura indígena – em extensão – economicamente secundária, com predomínio de relações feudais;
= a área de supremacia da cultura transplantada, economicamente principal, com predomínio de relações escravistas.

Vista em conjunto, e do exterior, a colônia aparece definida pela segunda (capitania de Pernambuco e vizinhanças e capitania da Bahia, depois de revertida à Coroa e sediada no Recôncavo, o Governo-Geral). A primeira (área amazônica, área sertaneja, área vicentina, área platina) carece de significação, até o século XVIII. Nesta, só existem formas não sistemáticas de transmissão de cultura, transmitida oralmente ou por imitação, salvo no que se refere aos religiosos de ofício. Naquela, aparecem formas sistemáticas de transmissão de cultura, monopolizadas pelas Ordens religiosas, os jesuítas em destaque. Em ambas defendiam-se, evidentemente, as duas culturas – a da classe dominante e a da classe dominada – aparecendo a primeira como a cultura em geral.. Ambas são transplantadas – salvo, o que é irrelevante, a que pertence ao índio – e participam do processo dito de "aculturação". A sociedade definida em duas classes, que mantém entre si grande distância social, não tem exigências culturais destacadas, nem mesmo a dos conhecimentos mais elementares – ler, escrever e contar – dos colégios jesuíticos. Os que recebem esse ensino são pouco numerosos e pertencem à classe dominante, assim como os que vão além desse nível.

O aparelho de Estado, na colônia, é rudimentar; suas funções são providas da metrópole; a ordem pública está submetida à ordem privada. Não há, assim, exigência cultural sistemática a ser preenchida pelo ensino, pela cultura que está nos livros. Os poucos elementos cultos – em que se distinguem os religiosos das Ordens – operam com a cultura transplantada. Aqui chega, realmente, mínimo e distante eco das criações renascentistas e mesmo do esplendoroso quinhentismo português. Assim, a cultura parece, ostensivamente, como traço de classe; privativa da classe dominante pouco numerosa. No conjunto, aliás, inculta.

ETAPAS DA CULTURA

Aceita a premissa da cultura transplantada, é possível repartir o desenvolvimento da cultura brasileira em 3 etapas:
1°: cultura transplantada anterior ao aparecimento da camada social intermediária, a pequena burguesia;
2°: cultura transplantada posterior ao aparecimento da camada intermediária;
3°: surgimento e processo de desenvolvimento da cultura nacional, com o alastramento das relações capitalistas.

As duas primeiras etapas pertencem à época em que a classe dominante, no Brasil, é escravista ou feudal, isto é, formada por senhores de escravos ou de servos, evoluindo de uma fase inicial em que, praticamente, não há camada social intermediária entre senhores e escravos ou servos, para uma fase em que essa camada começa a existir e a ter um papel que é, aliás, muito importante no que se refere à cultura. A terceira etapa pertence à época em que a classe dominante, no Brasil, é a burguesia, tendo desaparecido o escravismo, persistindo, entretanto, remanescentes feudais, parcelas de população vivendo em relações pré-capitalistas. A esta etapa pertence a vigência dos meios modernos de cultura de massa.

É possível fixar, para referência, a passagem da primeira à segunda etapa na altura do início da segunda metade do século XVIII. Em 1750, o Tratado de Madri fixa, em linhas gerais, a fisionomia territorial da colônia; é desse ano a fundação do Seminário de Mariana, assinalando o princípio da passagem da estrutura jesuíta do ensino às outras Ordens e aos leigos; em 1759, Pombal expulsa os jesuítas e, com isso, arruína a referida estrutura de ensino, que vigorou, solitária, dois séculos e meio; em 1762, o Rio de Janeiro passa a ser a sede do governo colonial, em decorrência do apogeu da mineração; com esse apogeu, e tudo o que dele deriva, estão realizadas as condições para o papel que começa a ser desempenhado pela camada social intermediária, a pequena burguesia. Assim, parece aceitável a data de 1750 como divisória entre a primeira e a segunda etapas, sempre dentro da concepção da relatividade e de recurso didático das repartições no tempo de complexos processos de desenvolvimento histórico.

Na historiografia brasileira, por outro lado, as opiniões convergem cada vez mais no sentido de aceitar a Revolução de 1930 como etapa que define com clareza o avanço das relações capitalistas no Brasil e, conseqüentemente, a ascensão da burguesia à posição dominante, não só do ponto de vista econômico – o que dispensa controvérsia – mas também do ponto de vista político. O novo poder, derivado do movimento político-militar do referido ano, apresenta a burguesia como classe dominante; seu domínio no aparelho de Estado não é absoluto, mas existe nitidamente. Assim parece aceitável assinalar em 1930 a passagem da segunda à terceira etapas do desenvolvimento histórico da cultura brasileira. A partir de então, as relações capitalistas, que se vinham desenvolvendo lentamente, aceleram seu ritmo de desenvolvimento e definem o regime de produção, apesar da vigência ainda, em extensas áreas, de relações pré-capitalistas.