Gostaria de fazer uma denúncia a todos. Eu, Mário Sérgio Barroso, 30 anos, 1,74m de altura, olhos castanhos, branco (cor de pele e humano de raça), RG: 43.928.016-3, atuo no crime organizado. Mas, antes de você sair correndo ligar para a polícia, faço um alerta: cuidado, somos comparsas!
Minha carreira no crime começou
cedo, de forma passiva. Uma criança ingênua, nascida na década de 80, que logo
caiu nas garras do governo, da mídia e das grandes corporações. Enquanto eu pedia
e brincava com brinquedos industrializados, como um mero videogame – objeto de
desejo da maioria das crianças de classe média da época, vítimas de uma intensa
massificação de publicidade que lapidou esse produto na mente da minha
geração - milhares de pessoas eram escravizadas no processo de produção dessa
maravilha, seja na China, em Twain, ou em qualquer galpão anônimo de subemprego
da América, por exemplo. Inclusive meus pais eram escravizados pelo crime
organizado para poderem me presentear com tais brinquedos, tirando muito mais
que o dízimo dos seus salários para tanto, afinal, esses produtos carregam
taxas que esfolam qualquer trabalhador, mutilando sua renda de forma
abusiva e covarde.
Assim, cresci, cometendo o crime
sucessivo de fazer parte e acreditar nesse sistema. Adquiri bens e desejos que
não eram meus, formei aquilo que eu chamo de consciência. Quando completei o
processo de independência em relação a minha família, o processo de formação
curricular, comecei a tatear de forma mais clara como se deu o processo de dependência
que eu fazia parte, o qual já fazia parte de mim.
Durante todos esses anos recolhi,
incansavelmente, provas contra esse sistema. Contra você e eu. Não é fácil se
reconhecer, mas é necessário. Hoje, tenho a plena certeza de que um jovem que
compra três gramas de cocaína para fazer a sua noite mais feliz é tão comparsa
do crime organizado quanto uma senhora que compra dois quilos de carne no
supermercado para fazer a mistura do almoço de domingo. Tanto o produtor da
droga quanto o produtor da carne são criminosos e os consumidores de ambas as
substâncias são viciados e cúmplices.
Descobri que grande parte do
dinheiro do narcotráfico, por exemplo, não está nos morros, mas nos bancos. Instituições
que ainda lavam dinheiro sujo do tráfico internacional de armas, órgãos e
pessoas, entre outros delitos. Se você tem conta em algum banco, como eu, você é
cúmplice desses crimes. Cúmplice de instituições que atuam nas mais diversas
esferas e ditam, junto aos chefes de estado, a mídia e as grandes corporações,
o resultado da equação do desequilíbrio social. Cada criança analfabeta, cada
jovem drogado, cada cabeça de gado que vira bife no açougue ou supermercado, é
friamente resfriada e calculada, assim como, sua oferta, seu acesso.
Veja quanta incoerência e
hipocrisia da nossa parte: não admitimos que um assassino trabalhe dentro da
nossa casa, seja para pintar uma parede, mas admitimos que um grupo deles nos governe, cuide
do nosso dinheiro e ainda façam uma jogatina particular com os juros do rendimento do
mesmo e pintem o sete à vontade ao redor do mundo.
“Nossa, que radicalismo sem noção”
- exclama a senhora na fila da carne, que acabou de escutar as afirmações
acima. Com dó e sem piedade eu reafirmo: sim, senhora! No entanto, com um pouco
de noção!
Pois foi dessa forma que seguimos
como civilização, evoluindo, até aqui. Criticamos a corrupção política, mas financiamos
e participamos ativamente do processo eleitoral, acreditando pelos mais
diversos motivos que alguém pode entrar no jogo e mudar algo. Enquanto votamos,
alimentamos a corrupção política, seja por convicção ou
pela falta dela. Não contribuímos em nada com a chamada Democracia, até porque
não nos permitem e continuamos caminhando com medo da ditadura que nos fez
parar para sofrer e pensar. No fundo, sofremos muito mais do que pensamos. Ainda escolheram um caminho que não foi o melhor, fazendo a
gente acreditar que nós o escolhemos, entoando o coro de que era a única saída.
E nessa, as dicotomias foram
criadas, implantadas em nosso cérebro numa programação mais poderosa do que a neurolinguística,
sem saída. A reflexão persiste, como tabu: ditadura ou democracia, capitalismo
ou socialismo, esquerda ou direita. Situações, que embora pareçam antagônicas,
são irmãs de sangue, corpo e alma.
Quando o nosso foco deveria ser mais
amplo, não apenas restrito a dinheiro e poder, crime e castigo. A algo que transcende
o limite entre as ciências sociais, a filosofia, a psicologia, a religião. Aquilo
que nos torna humanos, ou seja, a soma disso tudo e mais um pouco que ainda
desconhecemos, como as influências genéticas e cósmicas.
“Esse cara é louco”, agora afirma
a senhora. Reafirmo novamente: sim, senhora. Um louco como outros tantos, que sobrevive
em uma sociedade hospício e vê loucura em tudo que você acha normal e
normalidade em tudo que você acha loucura.
Se você ler esse texto num jornal ou na internet (seja até mesmo no meu blog), não pense inocentemente que esses veículos estão isentos, até porque a liberdade de expressão não nos mata e nem nos fortalece, apenas dissimula.
A verdade é que enquanto eu
estiver vivo continuarei cometendo crimes, afinal, já estou enraizado no crime
organizado e vice-versa. Quando compro qualquer produto ou consumo qualquer
bem. Quando presto qualquer serviço ou exerço qualquer atividade profissional.
Por mais que você não aceite,
somos cúmplices, criminosos e comparsas! A não ser que você produza seu
alimento, suas roupas, seus utensílios domésticos, seus bens de consumo. O que
não é o caso, pois se fosse, não teria como você ter, sequer, acesso ou
interesse por esse texto.
Tenho a ousadia de afirmar que
não há nada que escape das garras do crime organizado, até mesmo os índios mais
isolados que ainda vivem no interior do Brasil. O crime organizado dominou o
mundo, moldou o ser humano e determina a relação de promiscuidade do segundo
com o primeiro.
Em meio a esse tsunami de argumentos
e descrença, ainda há uma saída. Mas, segundo uma teoria que a insônia e a insanidade
me fizeram produzir: 80% das pessoas desejam encontrá-la, só que as 20% que detém
o poder (ou estão ligadas a ele, direta e indiretamente) desejam escondê-la.
Por enquanto, eu continuo sendo um criminoso, buscando uma forma de me tornar
inocente, até agora, sem sucesso.
Eu me confessei, denunciei a
minha participação no crime organizado neste depoimento de três laudas e incluí
você como meu parceiro e cúmplice. Agora, defenda-se se achar necessário ou prenda-me, se
for capaz!